PUNHAL DE DEUS Me chamo Eva, embora ninguém mais me chame assim, e talvez o nome importe tanto quanto um salmo esquecido. Ando. Ou melhor: fujo. Ouço os próprios passos como preces ressequidas que nunca chegam ao céu. Cinquenta e três anos, uma costela trincada pelo tempo e a outra pela falta de fé. Não acredito em Deus, mas às vezes falo com Ele, como quem provoca um espelho rachado. Hoje, a cidade se apagou mais cedo, sem postes, sem lua, só o cheiro acre da umidade e a lembrança do breu onde, criança, eu tremia esperando a avó voltar da missa. Foi pelos olhos que vi primeiro. Sempre os olhos. Um par de brasas acesas onde só devia haver noite. Ele surgiu da sombra como quem volta de um lugar onde o corpo já não sabe que existe. Firme e lento. Um corte no tempo. “A senhora poderia fazer uma oração por mim?”, ele disse. Mas não pediu: ordenou. A voz arranhava. Era como engolir cacos. “Não sou ...