PUNHAL DE DEUS

Me chamo Eva, embora ninguém mais me chame assim, e talvez o nome importe tanto quanto um salmo esquecido. Ando. Ou melhor: fujo. Ouço os próprios passos como preces ressequidas que nunca chegam ao céu. Cinquenta e três anos, uma costela trincada pelo tempo e a outra pela falta de fé. Não acredito em Deus, mas às vezes falo com Ele, como quem provoca um espelho rachado. Hoje, a cidade se apagou mais cedo, sem postes, sem lua, só o cheiro acre da umidade e a lembrança do breu onde, criança, eu tremia esperando a avó voltar da missa.

Foi pelos olhos que vi primeiro. Sempre os olhos. Um par de brasas acesas onde só devia haver noite. Ele surgiu da sombra como quem volta de um lugar onde o corpo já não sabe que existe. Firme e lento. Um corte no tempo. “A senhora poderia fazer uma oração por mim?”, ele disse. Mas não pediu: ordenou. A voz arranhava. Era como engolir cacos. “Não sou cristã”, falei, e a frase saiu seca, nem blasfêmia, nem coragem. Só verdade. Uma verdade que não cabia naquela rua.

Ele sumiu. Mas ficou. Ficou o silêncio dos passos dele dentro dos meus. Uma presença que me escoltou até o portão. Cada passo meu parecia ecoar dois dele, e eu já não andava: afundava.

Cheguei em casa. Ou achei que tinha chegado. Porque ele estava lá.

Na soleira. O olhar brilhava como se estivesse sob um altar invisível. “A senhora é cristã?”, perguntou de novo. A mesma frase, outro tom. Agora era a lâmina já encostada no pescoço.

Eu disse que não. Ele respondeu com uma profecia: “Por isso, vou matá-la”.

Eu ri. E o riso me cortou mais do que a lâmina. Rir era não crer. E não crer era morrer. O canivete brilhou. A lâmina tentou me atravessar duas vezes. Dobrou. Falhou. Como se algo no aço recusasse o destino. Caí. O chão de Rio Bonito me beijou com o hálito da morte.

Mas ele não parou. Continuou. Cada golpe, um salmo ao avesso. Um culto de dor. Dez estocadas nas costas. A última, na cabeça. Ali, entre os azulejos e meu sangue, esperei ver uma luz. Um portal. Um rosto. Vi mofo.

Não morri. Ainda não. O sangue escorria morno, fazendo cócegas de criança. E pensei: se eu tivesse mentido, dito sim, sim, sim — Jeová, Oxalá, Buda, qualquer nome que lhe soasse oração —, ele teria parado? Teria me dado um beijo em vez de uma sentença?

Depois disseram que ele matou outro. Roubou. Fugiu. A polícia anotou: ouvia vozes. Eu também. Ouço agora. Vozes que me chamam para a cozinha, para a morte, para o silêncio.

Não morri. Ainda não. Mas talvez o que mais me cortou tenha sido a pergunta. Aquela pergunta. E o que ela esperava de mim.

Talvez Deus, no fim, seja isso: um punhal que pergunta.

 

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