“LABORATÓRIO DE INOVAÇÃO DA MESMICE”:COMO REINVENTAR A RODA COM SLIDES RECICLADOS”
Cenário:
Um auditório bege com carpete manchado e pufes mal posicionados. Um telão exibe
a palavra INOVAÇÃO — escrita em Comic Sans, claro, porque nada diz 'futuro'
como uma fonte de 1994 — enquanto senhores engravatados falam sobre
disrupção... com medo de Wi-Fi.
Alvo:
Empresas que falam de inovação como se fosse um ser místico, enquanto ainda
usam fax.
CENA:
O palco é um
auditório com ar-condicionado ligado no modo "desconforto sutil". O
som do projetor é mais alto que as ideias. A palavra INOVAÇÃO pisca no telão,
em Comic Sans, com uma animação que parece feita em 2002. Há café morno em
copos biodegradáveis que derretem devagar. Uma mesa está posicionada no centro,
com três pessoas e um estagiário que segura o microfone como se fosse uma
relíquia sagrada.
PERSONAGENS:
- Sr. Fontoura – Diretor de Inovação que
ainda imprime e-mails "por segurança".
- Patrícia PowerPoint –
Especialista em frases de efeito que cabem num slide e num outdoor.
- Estagiário Vortex –
Jovem gênio digital com cara de exausto e alergia a retroprojetor.
SR. FONTOURA
(digno, ajustando o microfone com dois toques desnecessários)
Bom dia, pessoal. É com grande entusiasmo que damos início ao nosso segundo
encontro de inovação anual. Hoje vamos falar de disrupção com
responsabilidade, porque inovar não precisa ser... anárquico, certo? (risos
fracos)
PATRÍCIA POWERPOINT
(sorrindo com dentes e sem alma)
Exatamente, Fontoura. Aqui na empresa a gente respira inovação... desde que
alguém aprove antes. Aliás, alguém sabe onde tá o botão do projetor?
VORTEX
(já levantando, resignado)
Tá atrás do painel. Precisa reiniciar três vezes e pedir desculpas.
SR. FONTOURA
(rindo como se fosse espontâneo, mas ensaiado)
Brincadeiras à parte, pessoal... hoje vamos aprender a transformar nossa rotina
em inovação. E tudo começa com a nossa nova planilha dinâmica em Excel.
Patrícia, mostra aquele slide que muda de cor.
PATRÍCIA POWERPOINT
(passando os slides como quem realiza um exorcismo digital)
Esse aqui é nosso novo mindset visual. Como vocês podem ver... ele tem setas.
Setas são dinâmicas. Setas apontam para o futuro. E isso é inovação.
VORTEX
(para si, murmurando)
E o Wi-Fi ainda tá com senha de 2008...
SR. FONTOURA
(conspiratório)
E agora, nosso momento disruptivo: vamos colocar o cafezinho na sala ao lado.
Isso quebra padrões. Isso estimula sinapses. Isso... é vanguarda corporativa.
PATRÍCIA POWERPOINT
(entusiasmada demais)
E vamos implantar o sistema de ideias colaborativas! Qualquer pessoa pode
mandar sugestões. Elas vão direto pra uma caixa de entrada especial. Que
ninguém lê. Mas importa que exista.
VORTEX
(tentando não rir)
Chama-se Inovacaixa. Tá no rodapé do site. Em cinza-claro sobre branco.
[Luzes piscam. O telão trava. A palavra INOVAÇÃO
congela na tela como um presságio. O ventilador de teto faz um som que parece
um suspiro de tédio.]
SR. FONTOURA
(erguendo os braços com teatralidade contida)
Senhoras e senhores, agora o ápice da nossa jornada disruptiva: o lançamento
global de um projeto revolucionário. Algo que vai redefinir os mercados. Que
vai romper paradigmas. Que vai—
PATRÍCIA POWERPOINT
(interrompendo com brilho nos olhos e PowerPoint no coração)
—virar tendência! Chega de pensar pequeno. Hoje apresentamos ao mundo... MERDA™.
VORTEX
(quase tossindo o café biodegradável)
Desculpa, eu ouvi...?
SR. FONTOURA
(confiante, já deslizando o novo slide com gráficos irrelevantes)
Isso mesmo, MERDA™ — Matéria Estratégica de Reutilização Disruptiva Aplicada.
Um novo conceito em sustentabilidade e monetização. Você pode vender cocô.
Literalmente.
PATRÍCIA POWERPOINT
(entusiasmada como se falasse de foguetes)
É adubo, é energia, é NFT! Já estamos em conversa com investidores de Dubai,
que disseram: “Se é merda e dá dinheiro, estamos dentro!”
VORTEX
(se afundando na cadeira)
Isso explica o QR Code, na lixeira do banheiro.
SR. FONTOURA
(gritando, em tom de euforia corporativa)
Hoje vocês são testemunhas do futuro! Do zero ao cocô! Da ideia à descarga
econômica! A inovação... nunca cheirou tão real!
PATRÍCIA POWERPOINT
(batendo palmas sozinha, até outros seguirem por constrangimento)
E como forma de agradecimento a todos os presentes no nosso pré-lançamento
internacional...
SR. FONTOURA
(com reverência triunfal,)
...nossos assistentes distribuirão ao final deste painel frascos de Essência
Plus de Merda™, embalados à mão no interior do Sri Lanka por monges com MBA
em marketing olfativo.
**[O telão apaga. A plateia aplaude de forma
confusa e nervosa. Um carrinho com pequenos frascos dourados começa a circular.
Uma voz robótica repete: “Inove com todos os seus sentidos.”]
Cena seguinte: o elevador corporativo, um cubículo
espelhado com cheiro de desinfetante floral e ambição abafada. Dentro, cinco
funcionários. Ninguém se olha. Três fingem estar ocupados com celulares sem
sinal. Um aperta o botão do 7º andar com força excessiva. O quinto — o tal
executivo esperançoso — segura sua sacola de brinde da MERDA™ com a reverência
de quem segura um diploma, mas com os olhos marejados de arrependimento.
SILÊNCIO.
SOM: ding.
Crachá batendo — no crachá. Plástico do frasco aromático rangendo com elegância
inútil.
VOZ ROBÓTICA (do elevador): "Inove com todos os seus sentidos."
O executivo engole em seco. Um filete de lágrima
escapa. Patrícia PowerPoint limpa a garganta. Alguém finge tossir só pra
disfarçar o som emocional. O estagiário Vortex aperta um botão aleatório — só
pra ver se aquilo é real.
EXECUTIVO (em sussurro trágico): Eu só queria mudar o mundo...
VOZ ROBÓTICA: "Andar
7. Espaço Disruptivo de Reflexão Modular."
As portas se abrem. Ninguém sai. Ninguém entra. Mas
todos sentem que perderam algo. Talvez a dignidade. Talvez só o senso de
direção. Talvez o olfato.
CORTE.
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