ENTROPIA: DRAMATURGIA DA DISSOLUÇÃO E A REINVENÇÃO DO CORPO RITUAL

 

VINHO E CATARSE: COMO "ENTROPIA" DISSOLVE O ESPECTADOR PARA REINVENTÁ-LO: O espetáculo que oferece vinho, proíbe uso de câmeras (fotografia e filmagem) na medida que transforma a plateia jovem em celebrantes de um ritual dionisíaco contemporâneo.

 



O RITO COMEÇA NA TRANSGRESSÃO: PRÓLOGO AO CAOS


O teatro exige o rigor cronométrico do tempo. Dois minutos de atraso — talvez três — são pecado venial contra a pontualidade cênica. Mas a arte, por vezes, convida à pequena transgressão. Ousei cruzar o limiar do Barracão Entropia mesmo assim, sabendo que ali dentro já tinha começado algo que exigia mais do que presença.

Para minha surpresa, a recepção não foi barreira, mas oferta eucarística profana: a produção me estendeu uma pequena taça de vinho. Nenhuma palavra, apenas o gesto — tome, beba, entre. Aceitei o cálice e deslizei para a primeira fila, a zona de perigo, acomodando-me ao lado de dois casais jovens. A plateia inteira era jovem. Não o público tradicional de teatro, mas uma geração que busca experiências que os atravessem, que recusa o entretenimento passivo, que quer ser consumida pelo que consome.

O instinto do ofício falou mais alto. Saquei a câmera — impulso automático de quem precisa registrar para depois entender. Imediatamente, fui interceptado pelo aviso firme: não é permitido. O obturador teve que se calar. Guardei o equipamento com a mesma estranheza de quem é impedido de documentar o que ainda não compreende.

Confesso que, por um instante, a “proibição” me pareceu enigma. Minha mente de pesquisador, já alterada pela atmosfera, flertou com o delírio: estariam planejando um porre coletivo? Durante o espetáculo, a produção circularia várias vezes oferecendo mais vinho, mantendo aquele estado liminar entre sobriedade e embriaguez. Seria a interdição da imagem uma forma de nos forçar à experiência pura, sem mediação? Imaginei que o espetáculo era estratégia para nos dissolver em vinho antes de nos dissolver em cena. Por isso a restrição da produção de imagens — ninguém filma o próprio êxtase, ninguém fotografa a própria catarse.

Aquele gesto simples se transformou em prenúncio. Ali, com o sabor da uva na boca e a lente da câmera do celular tampada, senti que não estávamos ali para ver, mas para vivenciar. Aquela mini taça era limiar entre o mundo de fora e o que estava por vir. O cheiro do vinho não era apenas bebida — era o odor do vinho grego ancestral, invocando Dionísio para preparar o espírito. Byung-Chul Han escreve sobre o fim dos rituais na contemporaneidade, sobre como a aceleração capitalista dissolve toda forma de celebração coletiva. Ali, antes mesmo do primeiro gesto cênico, eu já estava sendo iniciado em algo que resistia a essa dissolução. O vinho seria oferecido múltiplas vezes ao longo da apresentação, mantendo aquele fio tênue entre lucidez e transe, entre testemunho e participação.

Não saberia ainda, mas aquela interdição da câmera era a primeira lição do espetáculo: entropia não se registra de fora, se experimenta de dentro. Não se captura, se atravessa. O vinho não era adorno, era sacramento dionisíaco que nos preparava para a catarse. E eu, espectador atrasado, cronista impedido de fotografar, estava prestes a testemunhar um teatro que recusa todas as formas de distância segura.

Ao redor, aqueles jovens esperavam em silêncio tenso. Não era ansiedade consumista de quem quer ser entretido, mas fome de quem busca ser transformado. Uma geração criada em telas, em distâncias mediadas, ali sentada para experimentar presença bruta, corpo contra corpo, ritual sem escape.

E então, o caos começou.

 

FICHA TÉCNICA: AS FORÇAS EM COMPOSIÇÃO




 

Grupo: ACPT - Associação Centro de Pesquisa Teatral
Direção e Dramaturgia: Marco Teechio
Composição Musical: Tays Villaca, Gustavo Zago e Sabiá

A escolha do trio de compositores revela desde já a intenção dramatúrgica: Tays Villaca, Gustavo Zago e Sabiá não criam trilha sonora como ilustração, mas constroem a própria matéria sonora do ritual. O som em "Entropia" não acompanha a cena — ele a invade, a deforma, a constitui. Tambores ancestrais dialogam com ventos que parecem vir de eras anteriores à linguagem, melodias que buscam as origens não como nostalgia, mas como força telúrica que ainda pulsa sob a superfície do presente tecnológico.

A ACPT se afirma aqui como espaço de pesquisa no sentido mais rigoroso do termo: não reprodução de fórmulas teatrais estabelecidas, mas investigação dos limites do corpo, do som, do ritual na cena contemporânea. O centro de pesquisa teatral como laboratório onde a entropia não é apenas tema, mas método.

 

 O CORPO COLETIVO: QUANDO O SINGULAR SE DISSOLVE


Marco Teechio fez uma escolha arriscada desde o princípio: reunir pessoas muito diferentes. Não por tolerância política ou diversidade de fachada, mas porque a própria ideia de entropia exige forças heterogêneas em conflito. Escolheu corpos distintos para depois forçá-los a dissolver suas individualidades num único organismo. Paradoxo produtivo: a diferença que se anula para criar algo novo.

O método é simples na descrição, brutal na prática. Nas improvisações físicas, "o impulso nunca parte de si, mas do coletivo". Ninguém move porque quer — move porque o grupo move. Os maneirismos pessoais, aqueles tiques que denunciam quem somos, vão sendo raspados até sobrar apenas o corpo comum. Não é o ator santo de Grotowski nem o performer revolucionário do Living Theatre. É outra coisa: um corpo que só existe na fricção com o outro, que não tem autonomia, que respira quando o grupo respira.

Isso não é apenas escolha estética. Vivemos tempos de hiperindividualismo selvagem, cada um trancado na própria bolha, cada experiência fragmentada em timeline pessoal. Teechio propõe o oposto: um teatro que só existe como comunhão. O corpo coletivo não é metáfora bonita, é materialidade concreta que se afirma na "fronteira entre controle e descontrole". Nessa zona liminar — território próprio do ritual — o espetáculo ancora sua força.

E aquela plateia jovem reconhece isso imediatamente. Eles vivem na fragmentação digital, mas vieram buscar o oposto: dissolução coletiva, experiência compartilhada, catarse em grupo. O vinho que circula não é apenas gesto teatral — é comunhão literal, sacramento que nos transforma de espectadores isolados em celebrantes de um mesmo ritual.

 

QUANDO A MÁQUINA INVADE O CANTO: O PÓS-HUMANO NA CARNE

 

O canto ancestral encontra o ruído da máquina. Poderia ser apenas denúncia fácil — a tecnologia matando o sagrado, a modernidade destruindo a tradição. Teechio é mais inteligente. Ele não constrói oposição simples, mas embate sem resolução possível. O pós-humano não fica na ideia, invade o corpo: altera ritmo, corta respiração, deforma gesto. É experiência física imediata, não conceito filosófico.

Os compositores Tays Villaca, Gustavo Zago e Sabiá entendem isso. Os tambores não são folclore embalsamado para turista ver — são forças percussivas que atravessam ossos. Os ventos que sopram vêm de tempo anterior à história, anterior às palavras. As melodias buscam "as origens" não como paraíso perdido, mas como camada que ainda pulsa sob a superfície do agora. Quando esses sons encontram os ruídos mecânicos, não há paz possível. O tambor luta contra a máquina, é invadido por ela, se deforma, mas não para de bater.

É nesse atrito que o sagrado se desloca. Bruno Latour e Anna Tsing mostram que a modernidade não matou o sagrado — ela produziu novas formas de sacralidade. A "ritualística humana contemporânea, urbana, fragmentada" que emerge em "Entropia" não é degradação do rito antigo. É sua mutação necessária. Teechio não lamenta o passado. Ele investiga como, mesmo cercados por máquinas e velocidade, ainda criamos formas de rito. O espetáculo vira etnografia performática do presente, laboratório onde se testa como o corpo resiste, se adapta, se reinventa.

Cada gesto carrega memória de luta. Cada movimento registra a violência da invasão tecnológica e a teimosia da pulsão ritual. Não há síntese pacificadora, só coexistência conflitiva permanente. Na paisagem sonora do trio de compositores, essa guerra ganha materialidade: vento ancestral enquanto circuito eletrônico range, tambor que pulsa enquanto frequência digital distorce, melodia que insiste em existir quando o ruído ameaça engolir tudo.

O som atinge frequências que produzem não apenas emoção, mas alteração física. Aquele público jovem, habituado a shows onde o grave vibra no peito, reconhece a operação: som como força que invade o corpo, que produz êxtase não pela melodia, mas pela vibração material. A música não ilustra o transe — ela o produz.

 

 ESCREVER NO PÓ: DRAMATURGIA DA IMPERMANÊNCIA




 

"Primeiros rabiscos sobre o pó." A frase já diz tudo: escrever sabendo que o traço será apagado. Mas essa fragilidade não é fraqueza — é método. Teechio constrói uma dramaturgia que assume a instabilidade como princípio. Recusa a ilusão de permanência que sustenta o teatro narrativo tradicional.

A decisão é radical: não construir narrativa que explique o mundo, mas criar espaço onde o público sinta a fragilidade de qualquer explicação. O que importa não é o que se conta, mas questionar a própria possibilidade de contar como forma de ordenar o real. Em vez de respostas, fissuras. Imagens que aparecem, se desfazem, deixam rastros.

Cada imagem tem autonomia provisória. Cada ação existe em presente absoluto antes de desaparecer. O palco vira "lugar de ruína em tempo real" — não há progresso linear, só acúmulo de destroços. Walter Benjamin descreveu a história assim: catástrofe permanente, anjo que vê a pilha de escombros crescer enquanto a tempestade o empurra para o futuro. "Entropia" materializa isso em cena.

Teechio não quer que a gente compreenda cognitivamente. Quer que a gente experimente somaticamente. A exaustão que o espetáculo produz não vem de barulho excessivo ou luz estroboscópica — é exaustão existencial, a percepção física de que tudo está em permanente transformação, inclusive a própria cena. "Não buscamos explicar o colapso, queremos que o espectador o experimente, mesmo que por alguns segundos, dentro de si."

A impermanência vira condição de existência. Tradições orientais (budismo, taoísmo) sempre souberam disso, mas Teechio não exotiza essas referências. Ele as usa como ferramenta dramatúrgica para lidar com o agora: tempo de aceleração vertiginosa onde nenhuma forma se mantém estável, toda identidade é provisória, o colapso não é evento futuro mas condição cotidiana.

E a catarse acontece justamente aí: quando a gente para de tentar entender e aceita apenas experimentar o desmoronamento. O vinho que circula pela plateia mantém aquele estado de lucidez alterada onde as defesas racionais baixam e o corpo pode finalmente sentir sem filtros. Não é embriaguez — é dissolução das resistências que nos impedem de viver o colapso como experiência purificadora.

 

O RISCO COMO CAMINHO: PROCESSO SEM MAPA

 

Teechio recusa a figura do diretor-deus que já sabe tudo antes de começar. Seu método é colaborativo não por ideologia, mas porque o próprio conceito de entropia exige "um processo de risco, de exposição e de investigação". Não dá para planejar o caos — é preciso habitá-lo.

"Não queríamos um espetáculo pronto antes de começar; queríamos um caminho." O processo foi caótico, exaustivo, mas também profundamente transformador. Não foi acidente — foi escolha. O elenco que topou habitar esse território instável virou coautor não apenas dos gestos, mas da própria concepção do trabalho.

Mas Teechio não desaparece nessa horizontalidade. Ele permanece como arquiteto que desenha o campo de possibilidades, que oferece "palavras" para que o elenco lhes dê "vida e individualidade". A estrutura existe, mas existe como plataforma para improvisação controlada, como limite que torna possível a liberdade. É a diferença entre democracia e caos total: as regras do jogo permitem que o jogo aconteça.

Esse processo de risco controlado é o que permite ao espetáculo produzir autêntica sensação de perigo. A plateia jovem sente quando algo é ensaiado até a segurança e quando algo mantém a possibilidade real de desmoronar. "Entropia" opera nessa zona de risco autêntico, e é por isso que a experiência é catártica — ela não simula o colapso, ela o encena mantendo a vertigem real do abismo.

 

A HERANÇA COMO MOVIMENTO: MEMÓRIA VIVA DE NEURI MOSSMANN

 


A dedicatória a Neuri Mossmann atravessa toda a entrevista como presença fantasmática que assombra produtivamente o trabalho. Para compreender a profundidade dessa homenagem, é preciso situar quem foi Mossmann no contexto do teatro paranaense: possivelmente o diretor mais radical e original que Cascavel conheceu, um artista que recusava acomodações estéticas e confortos dramatúrgicos com a mesma veemência com que "Entropia" recusa oferecer respostas fáceis.

Sua trajetória no TUCA (Teatro Universitário da Unioeste) deixou marcas indeléveis não apenas em montagens específicas, mas na própria concepção do que pode ser teatro. Dirigiu trabalhos como "A Padaria" e "Rasga Coração", espetáculos que já indicavam sua predileção por dramaturgias que não temem o conflito nem a complexidade. Mais radicalmente, assinou "Benzedura Concreto" e "Arvorere" — títulos que por si só anunciam uma poética do atrito: o místico encontrando o urbano, o orgânico invadido pelo industrial, exatamente as tensões que "Entropia" agora investiga.

A passagem de Mossmann por Cascavel não foi acidente biográfico, mas semeadura deliberada. Ele plantou em solo paranaense a convicção de que teatro não é entretenimento domesticado nem pedagogia ilustrativa, mas zona de risco onde artistas e público se expõem ao desconhecido. Teechio, ao dedicar "Entropia" a ele, não presta homenagem nostálgica a um mestre ausente, mas reconhece uma linhagem viva de artistas que escolhem o caminho difícil.

Teechio não transforma o mestre em monumento morto ausente, mas o mantém vivo como "herança que segue reverberando". A formulação é precisa: "memória não como estática, mas como movimento". Essa escolha revela maturidade artística rara — a capacidade de honrar um precursor sem se paralisar sob o peso da influência. Mossmann não é modelo a ser copiado, mas força que continua empurrando o teatro paranaense para territórios inexplorados.

O reconhecimento de que "a ousadia, o risco, a busca por um teatro que não acomoda" foram "semeados pela sua passagem" estabelece uma genealogia artística que recusa a ansiedade da influência (Harold Bloom). Não se trata de negar o precursor para afirmar a própria originalidade, mas de assumir a dívida como potência criativa. O espetáculo existe porque Mossmann existiu, e essa filiação não diminui, mas amplifica o trabalho.

A exclamação final "Evoé Neuri... Sinto inveja de João Pessoa que tem essa força da natureza por lá agora!" mistura celebração dionisíaca (Evoé, grito ritual que ressoa desde a introdução deste espetáculo), afeto genuíno e reconhecimento geográfico. O teatro brasileiro se faz também nessas constelações de afeto e influência que atravessam regiões, gerações, estéticas. Mossmann, que deixou Cascavel para João Pessoa, continua operando como catalisador de transformações teatrais onde quer que esteja — ou onde quer que sua memória ainda pulse.

"Entropia" é, nesse sentido, duplamente homenagem: ao homem Neuri Mossmann e ao princípio que ele encarnava — a recusa sistemática de qualquer teatro que acomode, que tranquilize, que resolva. Se a entropia é tendência à desordem crescente, Mossmann foi agente de entropia no melhor sentido: força desestabilizadora que impede cristalizações, que mantém o teatro em permanente estado de interrogação.

 

O QUE PODERIA TER SIDO: DESEJOS DE ESPECTADOR



 

Reconhecida a força do trabalho, cabe agora imaginar o que poderia ter sido explorado. Não é cobrança — é desejo projetado sobre o espetáculo. Toda crítica honesta carrega essa dimensão: e se?

Os Quatro Elementos: Território Não Mapeado

O espetáculo trabalha bem a dimensão sonora (ar que vibra, vento ancestral) e corporal (terra nos corpos que colidem, que tombam, que buscam o chão). Mas os quatro elementos clássicos — terra, água, fogo, ar — poderiam ter estruturado mais deliberadamente a dimensão mística do trabalho. Não como ilustração óbvia ou decoração, mas porque esses elementos carregam carga simbólica milenar que atravessa culturas.

A terra já está presente. O ar ressoa nos ventos e na respiração alterada. Mas cadê a água que dissolve, que flui, que muda de estado? Cadê o fogo que consome, que purifica, que destrói para regenerar? A entropia é também transmutação, e os elementos clássicos oferecem vocabulário cênico potente.

Imagino água jorrada sobre os corpos no momento de dissolução máxima. Fogo — mesmo que só na luz — marcando instantes de combustão ritual. Não como efeitos espetaculares, mas como presenças elementares que amplificariam a dimensão cosmológica que o espetáculo busca ao invocar Dionísio. A catarse poderia ganhar ainda mais materialidade se passasse literalmente pelos quatro elementos, completando o ciclo de transmutações que o conceito de entropia já sugere.


LUZ: O QUE FICOU NA PENUMBRA


 

A iluminação opera quase sempre em abertura generalizada. A lógica existe: permite testemunhar integralmente o organismo coletivo, recusa hierarquias, democratiza a visibilidade. Mas essa escolha deixa escapar possibilidades.

Luz em teatro não é apenas visibilidade técnica — é instrumento de sentido. Luz é tempo, emoção, guia do olhar. E mais: luz é sombra. Manter abertura constante nivela dramaticamente momentos que poderiam ganhar densidade através de recortes luminosos específicos.

Imagino alguns refletores fichados estrategicamente para criar zonas de sombra, ilhas de luz em meio à penumbra. Momentos de colapso ganhariam intensidade em penumbra quase total. Instantes de revelação poderiam explodir em luz súbita. A própria entropia poderia ser traduzida na alternância entre ordem luminosa e caos de sombras.

Artaud, que "Entropia" evoca em sua busca pelo ritual, sabia: luz não é neutralidade técnica, é violência poética. Um pino fichado no momento exato não é decoração — é punctum que fura a retina e a consciência. É a diferença entre ver tudo sempre e ser forçado a olhar para algo específico no instante preciso. O êxtase visual poderia ser potencializado por contrastes mais dramáticos, por clarões que cegam seguidos de escuridões que devoram.

Por Que Isso Importa

Essas observações não diminuem o que "Entropia" realiza. Apontam para camadas que poderiam ser adicionadas em futuras apresentações. Todo espetáculo é obra aberta, processo em curso. E talvez seja essa a maior qualidade do trabalho de Teechio: ele cria teatro que convida não apenas à contemplação, mas à intervenção imaginativa do espectador.

Meu desejo projetado é reconhecimento de potência: só se deseja expandir aquilo que já demonstrou força para comportar mais camadas. "Entropia" pode sustentar os quatro elementos, pode sustentar dramaturgia de luz mais arriscada, justamente porque sua estrutura atual já é sólida o bastante.

 

POR QUE "ENTROPIA" IMPORTA

"Entropia" é trabalho necessário no panorama do teatro brasileiro contemporâneo. Não uso "necessário" levianamente. O espetáculo importa por várias razões que se acumulam:

Rigor sem academicismo: A entropia não é metáfora decorativa, é princípio estruturante que contamina todos os níveis — do elenco à dramaturgia, da estética à ética do processo. Teechio não faz teatro sobre a entropia, ele produz entropia cenicamente.

Corpo ritual contemporâneo: Ao investigar como o corpo resiste e se transforma sob condições pós-humanas, o espetáculo oferece reflexão sobre mutações contemporâneas da experiência humana que supera em complexidade muito discurso teórico sobre o tema. É pensamento encarnado, não ilustração de conceitos.

Radicalidade formal sem arrogância: A recusa da narrativa explicativa e a construção de uma dramaturgia da impermanência desafiam tanto o teatro comercial quanto certo teatro "político" que ainda acredita poder representar o real de forma transparente. Mas essa radicalidade não é pose — é consequência necessária da proposta.

Ética coletiva em tempos de fragmentação: Num momento de fragmentação social extrema, propor teatro que só existe como corpo coletivo é gesto político fundamental. A dissolução das individualidades não é despotismo — é comunhão. E aquela plateia jovem, criada no hiperindividualismo digital, veio buscar exatamente isso: experiência de dissolução do eu em algo maior.

Coragem que não grita: Aceitar "habitar território instável onde criação e colapso caminham juntos" exige coragem rara. Teechio e seu elenco construíram espetáculo que confia na inteligência sensível do público, que não oferece conforto, que não explica. E fazem isso sem alarde, sem autoproclamação de vanguarda.

Teatro como catarse coletiva: "Entropia" resgata a função mais antiga do teatro — a purificação através do terror e da piedade, como diria Aristóteles. Mas atualiza radicalmente os termos: o terror é o colapso que vivemos diariamente, a piedade é a compaixão pelos corpos que persistem mesmo na dissolução. E a catarse acontece não pela identificação com personagens, mas pela imersão no caos compartilhado. O vinho que circula múltiplas vezes não é ornamento — é o pharmakon grego, veneno e remédio simultaneamente, substância que altera estados e permite a travessia.

A crítica possível não é ao que o espetáculo realiza, mas aos limites inerentes à própria proposta. A radicalidade formal pode criar barreira de acesso para quem não está familiarizado com linguagens experimentais. A questão que permanece: como democratizar o experimental sem diluí-lo? Como manter o risco sem transformá-lo em exclusividade de iniciados?

Mas a presença massiva de jovens na plateia sugere que essa barreira talvez seja menos intransponível do que imaginamos. Uma geração criada em festivais de música eletrônica, em experiências imersivas, em linguagens não-narrativas, reconhece imediatamente a operação de "Entropia". Eles não precisam de narrativa linear para se deixarem atravessar. Eles querem exatamente isso: experiências que os dissolvam, rituais que os transformem, teatro que funcione como êxtase coletivo.

Essas questões não diminuem a importância do trabalho. "Entropia" é teatro que não acomoda, não apazigua, não resolve. Teatro que mantém feridas abertas, que insiste no desconforto produtivo, que recusa reconciliação fácil. Num país e num tempo marcados pelo colapso de todas as formas de ordenação social, política e simbólica, fazer teatro sobre a entropia não é escolha temática arbitrária — é urgência existencial.

Teechio não oferece respostas porque compreende que as perguntas importam mais. Seu espetáculo é máquina de produzir questões, dispositivo de desestabilização, ritual contemporâneo que celebra a precariedade como condição de possibilidade. É teatro que aceita escrever no pó sabendo que o vento vai apagar, mas que escreve mesmo assim. Porque o gesto importa mais que a permanência. Porque o presente importa mais que o monumento. Porque o êxtase, por definição, não dura — mas transforma.

"Entropia" prova que ainda é possível fazer teatro radical no Brasil. Teatro que pensa, que arrisca, que transforma. Teatro que produz catarse sem oferecer consolo. Teatro que dissolve para purificar. Teatro necessário.



 

VIVA A EXPERIÊNCIA


"Entropia" será apresentado nos dias 28 e 29 de novembro, às 20h00.

Não é espetáculo para assistir de longe. É ritual para atravessar. Chegue no horário. Aceite o vinho. Guarde a câmera. Prepare-se para ser dissolvido.

Algumas experiências não se registram — se vivem.

O caos te espera.

 

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