I - VOCÊS VIRAM A FERNANDA TORRES ?
O colégio fervilhava naquela sexta-feira. O cheiro de giz misturava-se ao aroma adocicado dos doces da cantina, enquanto o barulho das cadeiras arrastadas e o murmúrio animado dos alunos ecoavam pelos corredores, sobrepondo-se ao som estridente da sirene do recreio. O burburinho era incessante: conversas agitadas, risadas soltas e uma energia coletiva de expectativa. No sábado à noite, partiríamos todos em excursão para o cinema em Corbélia. Para muitos, seria a primeira experiência diante de uma tela grande, longe da televisão pequena e cheia de chiados da sala de casa. As especulações giravam em torno dos assentos, dos lanches e da emoção de ver um filme de verdade, sem interferências, sem antena desalinhada. O entusiasmo se espalhava pelo ar, tão palpável quanto o calor abafado daquela noite de primavera.
O ônibus da Mioto chegou, um trambolho de lata cansada, sua lataria amassada refletindo o sol poente. Os bancos, duros como juízo de mãe severa, rangiam a cada movimento. O motor roncava como um velho resmungão, e um cheiro de óleo queimado misturava-se ao ar quente da estrada poeirenta. Vinte e cinco passageiros embarcaram, cada um carregando consigo a própria inquietação. Adolescentes agitadas balançavam-se nos assentos, homens ajeitavam chapéus surrados, mulheres ajustavam as saias com a solenidade de quem se prepara para um evento importante. O cinema era um marco, um acontecimento digno de memória.
No entanto, logo no início da viagem, um cheiro forte começou a emergir, primeiro sutil, depois avassalador. Alguns passageiros franziram a testa, trocando olhares confusos. A mãe do Zaqueu abanou o rosto com a mão, enquanto o Jeremias aos seus 11 de idade fez uma careta e cobriu o nariz com a blusa. Aos poucos, o desconforto se espalhou, acompanhando o odor crescente, que impregnava o ar com uma acidez inconfundível.
— Isso está parecendo o cheiro de um é gambá! — gritou alguém do fundo, em tom de alerta.
E era mesmo. Um gambá desgrenhado e de olhos arregalados surgiu entre os bancos. O pânico instalou-se. Pernas para cima, saias reviradas, berros cortando a noite. Um homem tentou subir no banco, mas tropeçou e caiu no colo de uma senhora que, entre gritos, desferiu-lhe bolsadas. Uma criança encolheu-se entre os assentos, tapando os olhos como se o gambá fosse um monstro de histórias assustadoras. O motorista xingava em voz alta, enquanto um passageiro tentava inutilmente afastar o animal com um jornal enrolado. Praguejando em alto e bom tom, o motorista jogou o ônibus para o acostamento. Entre poeira e desespero, um passageiro — ninguém sabe se corajoso ou insensato — agarrou o bicho pelo rabo e o arremessou pela janela. O gambá partiu. O cheiro ficou.
Chegamos ao cinema com a empolgação restaurada. A tela imensa, luminosa, impunha-se diante de nós, e o zunido do projetor trouxe um encantamento imediato. Quando as luzes se apagaram, a mágica aconteceu: o filme nos absorveu, apagando o cansaço, o cheiro persistente e até mesmo o gambá exilado na estrada.
“A Marvada Carne” era mais do que um filme. Era um retrato do que conhecíamos. Carula (Fernanda Torres) encarnava a esperteza e a determinação da moça do interior que queria se casar. Nhô Quim, um caipira de pés rachados e sonhos desmedidos, perseguia obstinadamente o casamento e um prato de carne de boi, metáfora maior da ascensão e do desejo inalcançado. Entre simpatias, superstições e pequenas trapalhadas, ele tentava moldar a sorte. Carula, por sua vez, não esperava apenas por milagres: arquitetava, ludibriava, reinventava a própria história.
O caipira no cinema não era retratado como piada, mas como herói de sua saga cotidiana. Nhô Quim não era um simples estereótipo cômico; ele carregava no olhar a determinação de quem enfrenta a dureza da terra e o peso dos dias incertos. Seu jeito ingênuo escondia uma astúcia peculiar, expressa em pequenos gestos e silêncios estratégicos, tornando-o não apenas um personagem divertido, mas um símbolo de resistência e esperteza do homem do campo. E, para nós, havia algo ainda mais valioso naquela tela: o reconhecimento. O sotaque arrastado, as casas simples, a poeira vermelha das estradas de terra – aquilo tudo era nosso, nos pertencia. Assistíamos à nossa própria realidade projetada em luz e sombra.
Na volta para casa, ainda sob o efeito do filme, os passageiros permaneciam em silêncio, absorvendo o impacto da história que haviam acabado de assistir. Era como se cada um estivesse revivendo mentalmente as cenas, encontrando nelas reflexos da própria vida. O zunido do motor do ônibus misturava-se ao rumor de pensamentos dispersos. Foi então que o motorista suspirou e, coçando a cabeça, revelou:
— Pois é… Vi aquele gambá antes da viagem. Ele tava rondando o ônibus. Mas achei que era coisa dele…
— Como assim, "coisa dele"? — perguntou alguém.
— Ah, esse gambá aí já é de casa! Sempre aparece quando passo por essa rota. Acho que gosta da farofa que o pessoal derruba, ou então… gosta de viajar!
As risadas explodiram, mas ele não parou por aí.
— E se duvidar… tava indo ver o filme também. Bicho tem cara de quem curte um caipira na tela.
O ônibus inteiro gargalhou. A história do gambá já era uma lenda local.
Na manhã seguinte, ao abrir a porta de casa, um dos passageiros que ajudara a expulsar o gambá sentiu um arrepio. No terreiro, impassível, estava ele: o gambá. Sentado, olhando fixamente, como quem cobra uma dívida antiga.
O pior não era sua presença, mas o detalhe sórdido: ele ostentava um pequeno curativo no rabo, como uma cicatriz de batalha, um lembrete silencioso de sua resiliência. Seu olhar fixo carregava uma estranha intensidade, quase como se tentasse comunicar algo incompreensível. A noite anterior voltou à mente do passageiro em flashes rápidos, e uma inquietação gélida percorreu sua espinha. Sobre suas patas, uma plaquinha improvisada, rabiscada com carvão:
“A carne é marvada, mas a vingança é um prato que se come frio.”
Engolindo seco, o passageiro tentou raciocinar, mas não houve tempo. O gambá ergueu um pedaço de carne — crua, enigmática — e avançou. O grito ecoou pela casa. O tumulto foi tamanho que uma cadeira tombou, uma mesa foi empurrada e a avó, assustada, fez o sinal da cruz.
Naquela manhã, uma lição foi aprendida:
— Nunca subestime um gambá.
Dias depois, enquanto um grupo relembrava a viagem entre goles de café com leite e mordidas em pão com ximia, alguém gritou:
— Vocês viram a Fernanda Torres?
Zaqueu, meu colega da sétima série, deu uma risada e, de boca cheia e pensou: acho que agora vou tomar uma fanta!
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